Conversamos sobre os déficits do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e do Regime Próprio dos Servidores Públicos da União (RPPS) com Leonardo Rolim, consultor de orçamento e fiscalização financeira da Câmara dos Deputados, ex-secretário de Previdência e ex-presidente do INSS. Em 2021, o RGPS fechou com déficit de R$ 250 bilhões, e o RPPS, com déficit de R$ 48 bilhões.
Como o senhor avalia os déficits dos últimos anos do RGPS? A reforma da previdência está surtindo os efeitos esperados?
Por algumas décadas, o Brasil viveu um bônus demográfico, período em que a população em idade ativa aumentou numa proporção maior do que a quantidade de aposentados. Inclusive, houve um período em que o déficit da previdência era pequeno. Isso foi no início dos anos 2000.
A questão é que o Brasil não aproveitou bem esse período. O PIB poderia ter crescido em proporções muito maiores ao que cresceu. Como eu disse, a população em idade ativa, que contribui para o PIB, estava crescendo numa proporção muito maior ao número de crianças e de idosos. O problema é que esse bônus demográfico acabou. Agora nós estamos numa fase em que a população brasileira está envelhecendo, e envelhecendo muito rapidamente. Existem projeções que mostram que o Brasil terminará esse século entre os dez países mais envelhecidos do mundo.
Só que tudo isso já era esperado. As projeções feitas pela Secretaria de Previdência para o Regime Geral já indicavam um crescimento muito grande do déficit previdenciário no período recente que passou e para os próximos anos. Tudo em função dessa questão demográfica. A expectativa de crescimento do déficit era muito maior do que está acontecendo. Quando nós avaliamos como seria o crescimento da despesa previdenciária com e sem reforma, o impacto é substancial, e vai ser maior nos próximos anos. Nos primeiros anos, você só afeta quem ia se aposentar naqueles anos. Quanto mais o tempo passa, maior o efeito da reforma.
Nós sempre dissemos que o intuito da reforma não era diminuir o déficit, mas controlar o seu crescimento. Pelo menos na primeira década, o déficit será mantido mais ou menos no mesmo percentual do PIB. É isso que está se materializando. Até um pouco mais, já que não tivemos apenas a reforma. Nós tivemos a Lei 13.846 de 2019, derivada da MP 871 de 2019, que fechou a porta para muitas fraudes legais, já que muitas pessoas faziam estratégias para receber benefícios com uma contribuição irrisória, além de ter facilitado o trabalho de combate às fraudes stricto sensu.
Somando a reforma com a Lei 13.846, nós tivemos um efeito razoável nessa despesa, que é o que está segurando o déficit em percentual do PIB, pelo menos até meados da próxima década.
Como o senhor avalia o tratamento que está sendo dado aos déficits do RPPS?
Desde a Emenda Constitucional 20 de 1998, o Brasil vem num processo para organizar a previdência do servidor público. Antes disso, era uma bagunça. Hoje se tem claro na Constituição que o Regime Próprio dos Servidores Públicos deve ser equilibrado financeira e atuarialmente. Com a Emenda Constitucional 103 de 2019, foi colocado claramente o que é esse equilíbrio financeiro e atuarial. Isso porque alguns estados, como São Paulo, ignoravam o que estava na Constituição e faziam o seu próprio conceito de equilíbrio. São Paulo é o estado mais deficitário de todos e que somente fez a reforma de benefícios.
Além disso, nós temos a lei complementar de responsabilidade previdenciária que ainda não foi aprovada pelo Congresso. Enquanto essa lei não for editada, a Emenda 103 estabeleceu que a Lei 9.717 de 1998, que saiu junto com a Emenda 20, é a Lei de Responsabilidade Previdenciária. Ela é uma lei mais enxuta, que já foi um pouco encorpada, e que estabelece que a Secretaria de Previdência tem poder normativo para complementar o que não está na Lei 9.717. Recentemente, a Secretaria de Previdência editou a Portaria 1.467 de 2022 que estabelece toda uma lógica de como devem funcionar os regimes próprios. Em termos de normas, nós avançamos muito desde o final da década de 1990, mas principalmente de 2019 para cá.
Agora, nem todos os regimes avançaram, a começar pelo da própria União. Ela tinha que dar o exemplo e ser a primeira a se organizar, sendo que é a mais atrasada. Eu diria mais do que o próprio Estado de São Paulo. A União, assim como São Paulo, fez apenas a reforma de benefícios, além de ampliar a contribuição dos servidores. Ela sequer possui uma entidade gestora única do seu regime próprio. Em nov/2021, foi encaminhado ao Congresso um projeto que trata desse assunto, mas que ainda não foi aprovado. Hoje, a União tem algumas centenas de unidades gestoras, sendo que a Constituição estabelece que cada ente tenha uma única unidade. A União está descumprindo a Constituição.
Além disso, todos os regimes próprios têm que ter um plano de equacionamento dos seus déficits. A União não tem a unidade gestora única, muito menos um plano de equacionamento do déficit, assim como vários estados, entre eles São Paulo, e municípios.
Considerando os estados e municípios que estão mais avançados, qual o senhor considera um bom exemplo a ser seguido e o que ele fez?
Para mim, um bom exemplo a ser seguido é o município de São Paulo. Eu falei muito mal do Estado de São Paulo, mas agora vou falar muito bem do município de São Paulo, que tinha uma situação idêntica à do estado, talvez até um pouco pior.
O município de São Paulo não tinha capitalização, escondia o déficit e a unidade gestora era parcial, já que o Instituto de Previdência Municipal (IPREM) só concedia pensões, sendo que as aposentadorias eram concedidas por cada órgão.
Só que eles resolveram enfrentar o problema e fazer uma ampla reforma. O Iprem passou a ser a entidade gestora. O município fez a capitalização, a segregação de massas e uma reforma de benefícios similar à da União. O déficit foi substancialmente reduzido e receitas futuras foram aportadas de forma a garantir o pagamento de benefícios no futuro.
Ativos como imóveis foram aportados, e na medida que isso foi acontecendo, o município foi transferindo vidas do fundo financeiro, que é um regime deficitário em extinção, para o fundo capitalizado, de tal forma a extingui-lo o mais rápido possível. Consequentemente, o déficit atuarial vai ficando cada vez menor, assim como o déficit financeiro.
Além disso, o modelo implementado tinha um custo de transição relativamente pequeno. Esse custo é o grande dilema quando se cria uma capitalização. Num regime de repartição simples, você usa a contribuição dos mais jovens para pagar os benefícios dos mais velhos, mas numa capitalização, a contribuição dos mais jovens vai ser utilizada para pagar o próprio benefício no futuro.
O aporte de ativos feito pelo município de São Paulo garante que esse custo de transição seja menor, já que a receita que será gerada por eles no futuro vai permitir o pagamento dos benefícios dos mais jovens, o que por sua vez permite que parte das contribuições dos mais jovens sejam utilizadas no pagamento dos benefícios dos mais idosos. É o que chamamos, num termo grosseiro da previdência, de comprar vidas.
De uma forma geral, esse assunto não está sendo tratado com uma superficialidade muito grande?
Sem dúvida. As pessoas tratam de forma superficial um tema que é o maior desafio das finanças públicas brasileiras para as próximas décadas, principalmente por conta dessa transição demográfica extremamente rápida pela qual estamos passando. Quanto mais tempo se demora para equacionar os déficits, mais difícil se torna o futuro. Isso poderia ter sido feito com antecedência, de forma muito menos dolorosa e com a criação de regimes de capitalização que estariam ajudando a financiar o desenvolvimento do Brasil e o investimento em infraestrutura, mas nós perdemos o bônus demográfico.
Nós temos uma capitalização, mas ainda muito acanhada, dos regimes que cumpriram a Constituição. Hoje nós temos mais de R$ 200 bilhões nesses regimes próprios, mas poderíamos ter muito mais. Os Estados Unidos são um bom exemplo. Lá, a previdência é uma das principais fontes de poupança privada que financia o desenvolvimento do país. Nós perdemos essa oportunidade, mas ainda temos tempo de correr atrás.
O Brasil possui bons exemplos de sucesso a serem aproveitados, inclusive no próprio Regime Geral. Por mais que o Brasil não tenha começado a capitalização com a Emenda 103, que estava no texto original, mas que não foi entendida e aprovada pelo Congresso, nós ainda temos tempo para criarmos um regime capitalizado para o Regime Geral.
Agora, mais do que tudo, os regimes próprios precisam, com urgência, cumprir o que está na Constituição. A União precisa dar o exemplo, e estados e municípios precisam agir. Mais da metade dos municípios ainda não fizeram as suas reformas, nem a de benefícios, nem a de equacionamento do déficit (reforma de custeio).
Não faz sentido os regimes dos servidores públicos terem déficit. Não faz sentido haver um subsídio da sociedade para um regime que é voltado para um público que tem garantia de emprego para toda a vida e que tem uma remuneração acima do padrão médio da sociedade. O que faz sentido é subsidiar o mais pobre. Isso ficou claro na Emenda 103. O setor público pode ganhar mais? Pode. Pode contribuir mais? Justíssimo. Mas as suas regras não podem ser melhores que as dos trabalhadores em geral e o seu sistema tem que ser equilibrado financeira e atuarialmente. É isso que está na Constituição e precisa ser cumprido.
Fonte Monitormercantil
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